“Já ouviu falar daquele
louco que acendeu uma lanterna numa manhã clara, correu para a praça do mercado
e pôs-se a gritar incessantemente: “Eu procuro Deus! Eu procuro Deus!".
Como muito dos que não acreditam em Deus estivessem justamente por ali naquele
instante, ele provocou muita risadas... “Onde está Deus!”, ele gritava. “Eu
devo dizer-lhes: nós o matamos – você e eu. Todos somos assassinos... Deus está
morto. Deus continua morto. E nós o matamos...”
- (Friedrich Nietzsche,
Gaia Ciência (1882), parte 125.)
Nietzsche, em seu
filosofar, não pode ser identificado como um filósofo portador de um discurso
periculoso e trágico. Pelo contrário, essa suposta carga negativista e
pessimista que se verifica nos seus escritos, ressoam, em quase todas as suas
abordagens, como um manifesto de reivindicação e de superação da condição
existencial humana. Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche destaca a necessidade
do anúncio do super-homem. Nele, Zaratustra, seu personagem principal, proclama
a falência da civilização e a aurora de uma nova era. É o anúncio de que o
homem deve superar a si mesmo, à sua potencialidade negada. Procurando sacudir
o velho homem, que vivia enclausurado no seu pessimismo e ilusão, o novo
pretende ser substituto daquele. O superar típico do super-homem, entendido
como ato de abertura para o nada ou para o sagrado, nada mais é do que a
própria vontade de poder. O super-homem como superação implica a dimensão do
divino, que, segundo Nietzsche, seria um “ponto” na vontade de poder. Sendo
assim, o divino não é uma coisa separada do homem, tampouco uma realidade para
fora de si e que tem poder de manipulação, mas o divino e o humano se encontram
no ato contínuo e ininterrupto de superação do objeto conhecido e, por
conseguinte, na consciência do não-poder em relação ao não-objeto, isto é, ao
nada (Penzo, 1999).
Desta forma, é
revertida a concepção metafísica do conhecer como esperança e a de Deus como
causa última de segurança. Para Nietzsche, a segurança na raiz metafísica leva
o homem a experienciar a convicção e a segurança, levando-o a ver Deus como
objeto último de sua esperança, donde provêm a sua fé e a sua verdade
absolutizada. Nessa linha, seria catastrófico para o homem, sedimentado em
terreno metafísico, ouvir a proclamação da morte de Deus, pois ela acentua a
natureza do medo e da dramaticidade existencial, visto que pensar na sua
ausência assinalaria o declínio da esperança e o estabelecimento da incerteza.
O anúncio da morte de Deus, portanto, não se trata de propagar idéias
anti-teístas. Não pretende ser a disseminação do ateísmo. Mas em erigir um novo
conceito sobre o homem e sobre Deus. A morte de Deus, para Nietzsche,
representa o fim e o declínio da formulação do Deus que a metafísica clássica
ocidental construiu: o de ser absoluto e supremo. Quer dizer que a ideia do
Deus do cristianismo deveria morrer na consciência do ser humano enquanto
mantenedor do sistema tradicional de valores. Como resultado disso, alguém
deveria ocupar o seu lugar – o próprio homem.
No passado, o ser
humano obedecia irrestritamente ao “farás” e “não farás”, da parte de Deus ou
dos códigos doutrinais rigidamente patrocinados e construídos pela religião
burocratizada. Para Nietzsche, esse ditos e sentenças estavam com os dias
contados. Uma nova ordem de valores estava para ser estabelecida. O homem não
mais podia se inclinar aos mandamentos divinos. Mas deveria ele mesmo conduzir
os seus próprios desígnios. Somente ele é que poderá fazer as suas escolhas. E,
acima de tudo, optar por uma delas, sejam elas boas ou más. É o que Nietzsche
emblematicamente denomina de: “a transvalorização de todos os valores”. Os
valores antigos e tradicionais caducaram. Esse arcaicos valores devem ceder
espaço para o surgimento de novos valores. Não mais centrados em afirmações
religiosas ou metafísicas. Mas redigidas e assinadas pelo próprio homem. Porém
não é qualquer homem. Tem de ser um homem superior. Não o que prometa
felicidade e gozo na transcendentalidade, mas concretamente, existencialmente.
Este homem superior, portanto, é o Ubermensch, literalmente homem superior,
passando a ser denominado também de super-homem. Entretanto, esse super-homem
não tem qualquer conexão com o herói em quadrinhos.
Nas reflexões de
Nietzsche, este homem superior era proveniente do desenvolvimento da humanidade
num sentido darwinista. Ele aceitava as idéias de Darwin no que tange ao
processo seletivo e natural da vida, no qual as espécies mais fracas são
aniquiladas e as mais fortes sobrevivem para produzir espécies mais fortes
ainda.
A teoria evolucionária
de Darwin fundamenta e alimenta os pressupostos nietzschianos, sobretudo em
relação ao homem superior. Porém, ele não pensou apenas numa nova raça
desenvolvida nos níveis educacional ou espiritual que partisse do inferior para
o superior. Ele tomou a idéia de Darwin literalmente. Pensava que o homem
superior haveria de ser fisicamente mais forte. Deveria ter poder no soma
[corpo] e na psique [alma]. Metaforicamente, deveria ser uma espécie de
“besta-fera”, um centauro [metade gente, metade animal], bastante desenvolvido
intelectualmente, não irracional, mas poderoso, representando, assim, uma nova
formatação existencial completamente acima e superior do homem europeu
massificado. O homem massificado evita a qualquer custo a controvérsia. É
conformista, indiferentista e não têm preocupações supremas, acha a vida
aborrecida e é cínico e vazio. É o que chama de niilismo (ex nihilo), para o
qual a nossa cultura se dirige (Tillich). A bem da verdade, ao anunciar o
super-homem como superação de si mesmo, Nietzsche sublinha e apresenta, em
Assim falou Zaratustra, uma nova transcendência filosófica, pautada no nível
existencial, na qual se abre o horizonte “nadificado” entendido positivamente,
que se resolve como o horizonte do sagrado.
Assim, em seu
pensamento sobre o sagrado, Nietzsche observa que a morte de Deus é um
acontecimento cultural, existencial e extremamente necessário para purificar a
face de Deus e, por conseqüência, a própria fé em Deus. Deste modo, Nietzsche
não mata Deus. Mas limita-se a constatar a ausência do divino na cultura do seu
tempo, acusando, pelo contrário, por essa ausência e morte, a teologia
metafísica. Com base na rejeição da tese da fé-segurança, que a priori funda-se
numa certeza típica da ciência, Nietzsche também crítica o espírito que levará
a secularização inautêntica ou ao secularismo do cristianismo.
Logo, matar a Deus
significa, noutras palavras, matar o “dogma”, o “conformismo”, a “superstição”
e o “medo”, é não aceitar mais a imposição de regras cristalizadas, que
impossibilitam a superação e a transcendência, além da auto-afirmação do ser
humano, que luta incansavelmente para libertar-se elevar-se em sua saga
existencializada.
Referências
Bibliográficas
COPLESTON, Frederick S.
J. Nietzsche: filósofo da cultura. Coleção Filosofia e Religião, Porto,
Portugal, Livraria Tavares e Martins, 1953.
MARTON, Scarlett.
Nietzsche. 4ª ed., In: Coleção Encanto Radical, São Paulo, Brasiliense, 1986.
PENZO, Giorgio. O
divino como problematicidade. In: Deus na filosofia do século XX, São Paulo,
Loyola, 1999.
TILLICH, Paul.
Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX. Trad. Jaci
Maraschin, 2ª ed., São Paulo, ASTE, 1999.