Rudá Ricci*
Uma barreira significativa que constatamos como cada vez mais emergente é a incompatibilidade entre a estrutura burocrática tipicamente brasileira e as novas estruturas de gestão participativa que foram se instalando ao longo dos anos 90 e 2000.
A estrutura burocrática tupiniquim é herdeira da portuguesa: altamente fragmentada em repartições e especializações associada ao forte personalismo. As duas características convergem para uma forte educação do funcionalismo público para atender e estar atento aos mandos e vontades das instâncias superiores da administração pública e não para o cidadão que, de fato, paga seu salário. Daí a frase comum que se fala neste meio em que “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Trata-se de uma mentalidade voltada para hierarquização e ausência de autonomia no processo decisivo. Seria a potencialização da estrutura racional-legal analisada por Weber.
Lembremos que no final da primeira metade do século XVI, a Coroa Portuguesa criou uma série de cargos e funções públicas de comando e controle sobre a sociedade civil: o governador, o juiz de fora, o ouvidor-mor, entre outros. Criou uma legislação de controle sobre os municípios muito antes deles existirem de fato em nossas terras. Enfim, a funcionário público é herdeiro deste olhar para “os de cima”, ignorando os “de baixo” ou os “não incluídos” na estrutura burocrática pública.
O Estado brasileiro moderno ganhará contornos ainda mais divorciados da cultura das ruas, do cotidiano do brasileiro comum, a partir dos anos 30. Até depois do final da Segunda Guerra, a academia brasileira continuava destilando análises elitistas, em que se sugeria que o Estado criaria a sociedade civil, já que em nosso país não teríamos tido a fortuna de ter passado por uma revolução burguesa que poderia ter constituído interesses de classe. Seríamos, utilizando os termos gramscianos, uma “sociedade gelatinosa”, amorfa. Este foi o pensamento dos estudos de Fernando Henrique Cardoso e Juarez Brandão, entre outros.
Este pensamento e educação do funcionalismo que olha para a hierarquia e não para a rua está consolidada em muitas carreiras públicas. E se transmuta em alguns casos, derivando para outras ideologias. Mas é comum que categorias mais bem pagas se autodenominem “príncipes do funcionalismo público” ou guardiões do Tesouro Nacional. Em outros casos, assume-se um olhar paternalista, protetor. Num outro extremo, uma postura passiva, intuitivamente silenciosa e cautelosa, anódina, insípida, que possa transitar por vários governos sem molestar uma futura ascensão na carreira. Mas, em todos os casos, não há uma cultura de servidor público. Fica, sempre, o laço com a liderança tradicional, o chefe superior, a dificuldade para se pensar a partir da sociedade civil. O Estado, na prática, transfigura-se em Demiurgo da Sociedade.
Contudo, a Constituição de 1988 alterou esta lógica, logo em seu artigo 1º, no seu parágrafo único que diz:
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Ora, se o poder emana diretamente do povo, a representação é um instrumento complementar, não substitutivo. E aqui, se impõe uma profunda mudança na lógica e cultura do Estado nacional.
Primeiro, porque o fluxograma passa a ser outro. A descentralização administrativa ganha caráter obrigatório porque o fluxo do planejamento e do processo decisório deve garantir a participação direta do cidadão. Expliquemos mais detalhadamente a novidade.
O fluxograma da estrutura burocrática brasileira é seletiva e excludente. O diagrama possível é de uma pirâmide (Figura 01)
Figura 01
Diagrama da Estrutura Burocrática Brasileira
A burocracia não aceita e conflita com as paixões populares, porque está focada na Razão de Estado, uma abstração que sugere um conhecimento e competências específicas para tomada de decisão pública, equilibrada que sintetizaria os interesses em políticas gerais.
Já o fluxograma ideal para uma estrutura pública que incorpora a participação do cidadão teria outro formado, obviamente (Figura 02).
Figura 02
Diagrama do Fluxograma da Estrutura de Gestão Pública Participativa
A estrutura acima ganha os contornos de uma “árvore”, onde as demandas sociais são reorganizadas por estruturas de Estado com controle social, ou seja, estruturas que estariam contaminadas pelas intenções da sociedade civil (observatórios, câmaras territoriais de gestão pública). As demandas passam a ser endereçadas para instâncias intersetoriais híbridas, ou seja, compostas por representantes sociais e técnicos de carreira. Tais estruturas sintetizariam as demandas, transformando-as em planos, programas e ações de Estado. Finalmente, o Corpo Técnico de Estado estudaria a viabilidade de sua execução e sua incorporação na dinâmica programática e orçamentária pública, retornando para a instância intermediária (híbrida) para sua validação social.
Um Estado absolutamente distinto e um corpo técnico do funcionalismo público com outro ideário e prática de gestão. Isto porque estaria mergulhado na dinâmica de negociação de interesses, teria que utilizar uma linguagem adequada para a compreensão popular. Além disto, os conceitos técnicos deveriam ser cotejados pelo conhecimento social dos territórios, construído com base nos valores e percepções locais. Da parte da sociedade civil, tal estrutura exigiria um novo perfil de liderança social, mais técnico, mais afeito ao diálogo (e menos espetaculoso e espetacular, ou seja, menos mobilista e mais dialógico).
Enfim, trata-se de pensarmos a encruzilhada que abrimos com a criação de estruturas de gestão participativa em nosso país. Criamos uma novidade nunca antes vista. Já temos 30 mil conselhos de gestão pública participativa espalhados por todo território nacional. A reforma política em discussão no Congresso Nacional deve incluir tal agenda.
* Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, Diretor Geral do Instituto Cultiva
Fonte:http://www.espacoacademico.com.br/087/87ricci.htm
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