DOM EDMÍLSON 30/12/2013
Confissões de um bispo
Como ser humano, o sacerdote Edmílson da Cruz confessa ser um homem vibrante e profundamente afetivo. Mas a inabalável opção pela vida de padre o ensinou a atravessar as tentações e amar o feminino pelos olhos do Evangelho
O título de bispo emérito (de Limoeiro do Norte) não traduz a potência que ainda reina em dom Edmílson da Cruz. Aos 89 anos, ele não encarna a imagem do “padre velho” aposentado. O contrário. Apesar da escoliose que desenha seu corpo em “S”, a disposição é tamanha, que a casa simples onde mora, na Visconde do Rio Branco, se transformou em “praça” de receber naipes de gente que carecem de sua experiência de vida.
Para além dos conselhos pessoais, é para lá que correm os que precisam de um respeitável mediador de conflitos sociais. No mês passado, por exemplo, estavam na sala de visitas do bispo: professores, estudantes, senadores, deputados e vereadores. Articulavam uma solução para a greve na Universidade Estadual do Ceará
Foi da morada de dom Edmílson, também, de onde partiram os homens que foram tentar com o governador do Ceará, Cid Gomes, um desfecho sem sangue para a “perigosa” paralisação da Polícia Militar.
Fora a atuação sócio-política-pastoral, dom Edmílson é generoso ao revelar faces menos conhecidas de personagens como dom José Antônio Tosi, arcebispo de Fortaleza. Criticado pela atuação omissa frente às pautas sociais da Cidade, dom Edmílson o desenha como “inspirador” e um “gestor” eficiente. Atributo técnico que também reconhece em Cid Gomes. “Competente”, porém desconhecedor da “alma humana”.
Na penúltima semana de 2013, dom Edmílson nos recebeu para um encontro que nem havia sido marcado. Foram mais de duas horas de conversa. E entre os diálogos, a curiosidade sobre as tentações de um bispo e de como, um homem perto de completar 90 anos, se prepara para o futuro que está à porta. E é ele quem dá o pontapé. Confira.
Dom Edmílson – Você sabe que eu estou na idade mais feliz da minha vida?
O POVO – Aos 89 anos?
Dom Edmílson – Sim senhor. A mais gostosa, a mais diferente. Preste atenção: isso aqui (pega na pele) já deixou de ser couro, agora é película. Isso é um processo inexorável e quase imperceptível. Passa para os músculos, para o braço. Cadê o braço? Está se acabando. Isso é visível. Passa para os ossos, eu sou praiano, bem alimentado, mas quando eu tinha 40 anos tinha condição de arrancar um percevejo (tipo de alfinete) com a unha. Hoje se fizer isso, ela se quebra. Dentro desse contexto, o que pode acontecer de melhor, humanamente falando, é que digam que eu faleci por falência múltipla dos órgãos. Isso em latim chama-se “defungir”, defuntar, desfuncionar. Bom, de 80 anos em diante, tudo é saldo. Quando se chega na idade que eu cheguei, o que vier - saúde ou doença, tristeza ou alegria - não deve ser considerado como a subida de uma montanha. Um sacrifício, um sofrer. Deve ser como um elevador que vai levando você à plenitude. Isso é a felicidade. Eu me sinto mais feliz em relação a qualquer idade de minha vida. Mas Santa Teresinha chegou à plenitude aos 24 anos. É possível também.
OP – Estou com 47 anos, penso que ainda tenho pelo menos mais 40 anos de vida...
Dom Edmílson – Ninguém pode saber disso, não. Quero te dar um conselho, velho bom é velho magro. Facilita até na hora de levarem (risos).
OP – Em 2014 o senhor completará 90 anos. Como uma pessoa nessa altura do tempo programa a vida para o ano novo?
Dom Edmílson – Não programo, o programa chega. Eu tenho coisa marcada como padre, como bispo, como cristão.
OP – Mas falo de projetos individuais?
Dom Edmílson – As irmãs josefinas estão querendo que eu vá à França no próximo ano (dom Edmilson mora numa casa da arquidiocese de Fortaleza com três religiosas). Há coisas programadas por causa da função pastoral. Outras não estão programadas e eu faço com a alma, como participar dos trabalhos da Comissão de Justiça e Paz da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Os bispos do Ceará me confiaram acompanhar a Comissão. Uma Comissão que é atuante e não é omissa. Há um pensamento bíblico que diz: “O homem se agita e Deus o conduz”.
OP – Por que é tão difícil perdoar no caminho da vida?
Dom Edmílson – Porque as coisas devem ser entendidas na pessoa como ela é, não como acho que ela deve ser. Você encontra pessoa que não perdoa uma palavra, mas encontra outras que perdoam uma punhalada no coração. Há o exemplo do papa João Paulo II (que perdoou o homem que atirou nele) e outros. A realidade humana é tão profunda. Deus fez tão bem feito, que é inconcebível uma pessoa agir a não ser motivada pelo bem. Mesmo que o bem para ela seja o mal para os outros. Até um mal abominável. Mesmo a pessoa por pior que ela seja ou se diga a pior, ela faz “só de mal” aquilo que ela julga ser o bem pra ela. Isso é uma base muito séria, humanamente falando, para saber perdoar. Há também a graça de Deus que nos dá a condição de participante da natureza de Deus.
OP – O senhor alguma vez duvidou da existência de Deus?
Dom Edmílson – Nunca. Duas coisas que nunca duvidei: uma é da existência de Deus. A segunda é a vocação para ser padre. Bispo não, nunca pensei em ser bispo. Nunca tive nenhuma dúvida, em nenhum instante na vida, que eu iria ser padre.
OP – Quando o senhor foi tocado?
Dom Edmílson – Não sei dizer.
OP – O senhor alguma vez, nesses 89 anos, se apegou a algum cargo ou bem material?
Dom Edmílson – Estava eu Sobral, padre novo, e tinha um sapato especial de fivela de prata que eu só usava na Ordenação (cerimônia de “formatura” de padres). Os sapatos eram uma coisa de estimação. Então, houve férias e começaram uma reforma, uma pintura, no prédio da igreja. Quando eu cheguei, tinha desaparecido. Nunca pensei que alguém fosse pegar aquilo. Passei um tempinho sofrendo com aquilo, uns três dias, depois passou.
OP – O senhor disse que nunca teve dúvida sobre o sacerdócio. Mas nunca desejou uma mulher, casar-se, amá-la, ter filhos?
Dom Edmílson – Nunca, nunca. E não é porque não goste, não. Eu tenho muita dedicação a muitas mulheres, como filhas espirituais. Amo muito mesmo, isso é outro nível de amor.
OP – Como homem, como o senhor fez para conter os desejos sexuais?
Dom Edmílson – Não é fácil não. Sou uma pessoa extremamente afetiva, que ama muito. Também nessa área a tendência é muito forte. E só pode ser muito forte porque se eu fosse frustrado, seria um doido, um homem esquisito. Vou responder mais completamente. Agora, nessa idade, concluo, que todo homem e toda mulher têm como primeira vocação ser pai e mãe. Se não realiza isso, pode ser um santo, mas será um santo truncado. O homem em mim é um homem vibrante, profundamente erótico, mas graças a Deus sem afobação. E nunca houve imposição pra mim, se alguém disser que fui padre por imposição não é verdade. Minha mãe queria muito que eu fosse padre, mas quando chegou o tempo do diaconato, hora de decidir pelo sacerdócio, ela me chamou e disse que não entraria a palavra dela. Oh mulher extraordinária! Era minha a decisão. Foi opção de vida, sou livre da graça de Deus. Agora, por que é assim (o desejo)? Porque somos pessoas humanas. Uma pessoa como eu é cercada de saias. E saia é saia! (E me conta um segredo, “absoluto segredo”, para usar o exemplo de um padre do Interior do Ceará que passou por uma situação de sedução).
OP – Muitos e padres e freiras chegam para o senhor, em confissão, para dizer que estão no limite desse dilema?
Dom Edmílson – Já encontrei, uma vez ou outra. Vou contar outro caso, esse mais espantoso. Um padre jovem, brilhante, inteligentíssimo, poeta, generoso... chegou em uma determinada paróquia e foi um encanto para a cidade. Uma vez chegou lá uma senhora atabalhoada. “Padre, eu vim pedir um apoio do senhor como meu pastor. Pelo amor de Deus, me salve. Eu estou apaixonado por um homem”, ela disse. “Não minha filha, se acalme, confie em Deus e Nossa Senhora. Leve essa noveninha, fique rezando, vai passar”, ele falou. Alguns dias depois, lá vem ela de novo. “Seu padre, fez foi aumentar”. Ela foi embora e numa noite bateu à porta. Quando o padre abriu a porta, ela foi se abrecando com ele. Uma fúria danada. Mais abrecada mesmo, corpo a corpo. Ele tentava se desligar dela e ela nada. Então o padre disse: “Eu vou matar você agora. Se você não sair já-já, vou matar você. Não é você, é o demônio e eu não vou permitir que o demônio faça isso”, o padre disse. O resto da noite ele passou, você pode imaginar como. No dia seguinte, ele foi para a diocese, o bispo ficou encantado com ele e mandou ele para outra paróquia. Mas veja como são as coisas, um tempo depois, ele renunciou ao sacerdócio e se casou. Jovens, tempo do Vaticano II... Ele e um colega dele, brincando, diziam que “se pensamento gerasse, já tinha sido gerado muitos meninos” (risos). Rapaz, não há segurança a não ser a segurança da pessoa mesmo.
OP – É parte do humano.
Dom Edmílson – Agora, tem uma coisa, isso importante: nunca, jamais, engula sapo nem lesma podre. Se você tem de enfrentar isso aí, transforme uma lesma podre em escargot, gostoso. Comida francesa. Se não transformar ela vai estourar e apodrecer você por dentro. Não tem jeito. Se é pra ser, haja do modo correto.
OP – O senhor transformou muito sapo em escargot?
Dom Edmílson – Posso lhe dizer assim, não. Graças a Deus, Nosso Senhor tem sido muito bom comigo. Não foi que faltasse, não. Houve um caso então, perigoso mesmo. Não sei se foi milagre, mas graças a Deus cheguei ao outro lado em paz.
OP – Se o senhor voltasse a ser padre, lá nos começos, o que o senhor faria diferente?
Dom Edmílson – Eu não tinha plano, meus planos eram o que me pedissem. Aí fui formatando o meu viver. Método, para certas coisas como para os estudos, eu tinha. Mas ainda hoje é assim, a minha primeira prioridade é ouvir as pessoas. Aqui nessa casa, onde estou desde 1998, entra de drogado a cardeal. No mês passado teve uma reunião, que durou três horas e meia aqui com os trabalhadores da Uece, eles vieram me pedir para mediar um diálogo com o governador Cid Gomes. Estavam aqui os senadores José Pimentel (PT), Inácio Arruda (PCdoB), deputados, vereadores, juízes e estudantes. Por aqui também passou a mediação da greve da Polícia Militar. Nunca Fortaleza passou por dias tão aflitos, tão perigosos. Graças ao bom Deus mandaram pra cá o coronel Monteiro Filho, do Exército. Daqui, depois de muitas discussões, liguei para dom José Antonio (arcebispo de Fortaleza) e fomos para uma reunião lá que durou duas horas. No dia seguinte, fomos nos encontrar com o governador. Lá, ele disse que era governador do Ceará, dos cearenses, que não podia ser governador de uma causa só. Disse, ao lado do Mauro Filho (secretário da Fazenda), que a situação dos Bombeiros e da Polícia Militar do Ceará era a melhor do País. Botina especial, colete a prova de bala, carga horária reduzida de 48 para 40 horas, viaturas... “Então, só tenho uma coisa a fazer: punir”, o governador disse sem perder a calma. A palavra passou para o arcebispo que falou pouco, mas foi inspirado: “Governador, nós estamos diante de uma situação que é preciso dobrar sem quebrar”.
OP – E o senhor?
Dom Edmílson – Comecei dizendo que as experiências da vida tinham de ser aproveitadas. Isso para que problemas, dados como resolvidos, fossem (realmente) resolvidos. Usei o exemplo da greve dos professores (da rede pública de ensino), um caso que ainda não estava resolvido. A prova é tanto que as paredes da Assembleia Legislativa estavam manchadas de sangue. A história foi longe. O que quero dizer é que o homem (o governador) é um técnico, competente, mas acontece que lhe falta a percepção mais profunda da alma humana.
OP – O senhor disse que dom José Antônio foi inspirador no episódio da greve. Ele é um homem que não participa da vida de Fortaleza ou é um personagem de bastidores?
Dom Edmílson – Participa. Agora, do jeito dele. Ele é um homem profundo. Não diria que ele é de bastidores, pois seria limitá-lo. Mas ele é muito reservado. Embora eu não concorde com ele em muitas coisas,ele é muito sensato. Dom José Antônio tem uma alma de artista, ele toca muito bem. Dom José Antônio passa duas horas na cozinha. É um exímio cozinheiro. No aniversário dele, ele passou horas fazendo o churrasco e ele mesmo serviu aos convidados. Foi o último a se servir. Vi ali um gesto duplamente evangélico. Com mais dez anos, ele vai deixar a igreja daqui com uma organização eclesiástica no máximo.
OP – Ele é mais gestor do que pastor?
Dom Edmílson – Bom, a pergunta é sua e não sei se posso responder porque não posso julgar. Éle é um homem distinto. Uma vez o vi chorar diante de uma situação de um problema com um padre. Ele não é omisso. Se você visse, como eu vi mais de uma vez, dom José, ao servir aquilo que ele preparou, o amor com que ele faz, a alegria que ele tem, você fica edificado. Quer dizer, não posso falar de um homem desses. Você se encanta ao ver aquele homem humilhado. Bem simplezinho, entregando aquele prato. Ele sente uma felicidade tão grande, só pode ser um gesto evangélico!
OP – O problema é que a gente julga muito.
Dom Edmílson – É. E sem compreender que cada qual tem sua história.
OP – O papa Francisco é sincero ou há no discurso dele uma estratégia política para recuperar a imagem da Igreja Católica ?
Dom Edmílson – Aquilo ali é mensagem evangélica legítima. Isso para mim não tem nenhuma dúvida.
OP – O senhor sabe quem é Deus depois de 89 anos de vida?
Dom Edmílson – Acho que sim. O importante não é saber se você adora Deus, é qual Deus você adora. Por quê? Deus foi inspirando ao homem, desde o início, a sua própria pessoa e natureza. A começar pela imagem dele que é a de um homem. A imagem mais perfeita de Deus é a do homem e da mulher. Os anjos são muito mais perfeitos na ordem espiritual, mas o homem e a mulher são em todas as ordens. E basta você olhar para a natureza que você perceberá. O oceano, por exemplo, é uma indagação que não tem resposta. É difícil imaginar um oceano nascido e criado do jeito que é, sem uma explicação prévia. Então, Deus vai inspirando o homem por meio da consciência livre e eles vão fazendo suas imagens de Deus. No Egito, uma batata foi considerada Deus. Era alimento, vida, havia uma lógica. O Boi Ápice era outra forma, por exemplo. Qual é o Deus que eu aceitei mesmo? Não estou com dúvida sobre Deus, não. Estou com dúvida de mim.
OP - Qual Deus o senhor construiu até aqui?
Dom Edmílson - Acho que foi mais ele que contruiu em mim. O Deus que está em mim e que está em você é um Deus ilimitado.
FONTE: O POVO
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