Essa foto é o Chico Marcolino da Ilha - Apuiarés - Ce |
Na
primeira dezena de agosto de 1983, o governador do Ceará, Gonzaga
Mota, assustou-me ao revelar uma estatística escandalosa apurada por
sua Secretaria de Saúde: por causa da seca que mais uma vez
castigava o Estado, estavam morrendo, antes de completar um mês, 250
crianças por cada mil nascidas vivas. A informação ganhou, no dia
seguinte, a primeira página do Jornal do Brasil. Era o começo de
uma escalada que me levaria ao epicentro do flagelo nordestino.
Repórter
do JB baseado no Ceará, acostumado a escrever notícias sobre as
"prolongadas estiagens", como os livros técnicos denominam
a seca, fui ao encontro dela, literalmente. Apoiado pelas lentes e
pela alta sensibilidade do fotógrafo Delfim Vieira, dirigi meu fusca
até Lagoa do Juvenal, um povoado entre as cidades cearenses de
Maranguape e Canindé. Ali, revoltados porque o Governo não lhes
pagara, como prometera, os 15 mil cruzeiros mensais do Programa de
Emergência - o Bolsa Família da época -, eles saquearam o comércio
daquela e de outras vilas. A foto da revolta foi para a primeira
página.
Mal o sol
do dia seguinte botou a cara no horizonte, tomamos de novo o rumo do
sertão. Chegamos a Irauçuba, por onde passa a rodovia BR-222 em
direção ao Piauí e onde ainda hoje o povo vive de teimoso. O
fusquinha vermelho entrou em uma estrada que mais era uma vereda,
ladeada pela caatinga cinzenta. Vinte minutos e muita buraqueira
depois, surgiu uma casa de pau a pique. De lá saíram uma senhora
idosa e um garoto de 15-16 anos. Era perto de 11 horas, o sol estava
a pino. "O que vocês comeram hoje?" E eles: "Ainda
vamos comer o que sobrou de ontem, uns pedaços de punaré".
Delfim não acreditou quando viu na panela os restos de um rato do
mato, cozido e misturado com farinha. A mulher e o menino contaram
que comer punaré, era comum em tempos de seca. Mais uma notícia com
chamada na capa do JB.
Na noite
de 21 de agosto, a TV Verdes Mares, afiliada cearense da Rede Globo,
mostrou o prefeito de Apuiarés, Fábio Alves, pedindo socorro por um
motivo incrível: "Aqui, o povo está comendo calango".
Amanhecemos lá. E na zona urbana de Apuiarés, não mais que 500 m
adiante da praça principal da cidade, deparamo-nos com um sertanejo
de uns 50 anos - parecendo ter 70 - com o rosto precocemente
enrugado. Usando uma baladeira, tipo de atiradeira muito utilizada no
Ceará, ele acabara de abater uma lagartixa de uns 20 cm de
comprimento. "O que vai fazer com isso?", perguntamos. "Vou
fazer um torresmo e depois comer." E testemunhamos todo o
rudimentar e deprimente processo culinário que se seguiu.
A foto de
Delfim Vieira, mostrando o sertanejo cearense segurando o calango,
correu o mundo. Foi para a primeira página do Jornal do Brasil, que
publicara, na véspera, uma foto do ministro da Fazenda, Delfim Neto,
jantando no famoso restaurante Maxim's, em Paris. As duas fotos
renderam charges de Ziraldo e Chico Caruso. Na do Chico, um brinde
transoceânico: o sertanejo erguendo o seu calango, o ministro a sua
taça de champanhe.
A
história do calango mobilizou a solidariedade nacional. E
internacional. Uma igreja Batista holandesa despachou de Rotterdam
para Fortaleza 20 contêineres cheios de roupas. E depois mandou uma
equipe de tevê que passou uma semana a documentar, nos sertões de
Canindé, a entrega de tudo. A BBC também veio e cumpriu
praticamente o mesmo roteiro. A seca estava, então, globalizada.
No
Brasil, coordenado por José Antônio do Nascimento Brito,
vice-presidente do Jornal do Brasil, um grupo de empresários passou
a transferir, mensalmente, uma ajuda financeira que socorreu 649
famílias cearenses. Cada empresário apadrinhou uma família. E cada
família, algumas com até 15 filhos, posou para uma foto enviada a
seu padrinho. Por sua vez, José Milton Dallari, titular da
Superintendência Nacional de Abastecimento (SUNAB), depois de ver
pessoalmente o drama da seca no Ceará, sensibilizou-se e, sob forte
emoção, mobilizou a indústria farmacêutica, que enviou
contêineres com remédios para todas as doenças. Detalhe, toda essa
ajuda veio aos meus cuidados.
Para
coordenar a distribuição de tanta colaboração, foi necessária a
criação da Associação Novos Clarões (ANC), constituída de
casais do movimento Encontro de Casais com Cristo. A ANC cadastrou
nas regiões de Bonito, Bonitinho e Serrinha dos Aragão, nos sertões
de Canindé, aquelas 649 famílias, que passaram a receber,
mensalmente, cestas básicas e, ainda, a assistência de médicos de
clínica geral, pediatras, obstetras, ginecologistas, oftalmologistas
e dentistas, todos voluntários. As visitas mensais da ANC, que
aconteciam sempre aos sábados, viraram um acontecimento para aquelas
comunidades sertanejas.
Passaram-se
27 anos. Hoje, o Ceará enfrenta, novamente, uma seca. A estação de
chuvas deste ano registrou pluviometria muito abaixo da média, como
haviam previsto os institutos de monitoramento do clima. Consequência
econômica da seca de hoje: a safra agrícola, estimada em janeiro em
1,4 milhão de toneladas de grãos (600 mil toneladas só de milho),
será de menos de 500 mil toneladas. Consequência social: outra vez,
há carros-pipa distribuindo água potável às populações
isoladas. Mas não houve e nem há notícia de gente morrendo de
fome; não há frentes de serviço; não há registros de pessoas
comendo ratos ou calangos.
Não foi
só por causa do Bolsa Família que as consequências sociais da nova
seca deixaram de ser trágicas e graves como as da "prolongada
estiagem" de 1983. Nem só porque o Banco do Nordeste criou,
ampliou e consolidou, em cinco anos, em toda a região, o Crediamigo,
promotor de uma revolução nos povoados mais pobres dos sertões da
região. O Crediamigo financia, com inadimplência perto de zero,
micro e pequenas iniciativas empresariais, como uma carrocinha para a
venda de picolé ou uma máquina de costura - o que fez aumentar o
consumo e os negócios entre os que eram desassistidos.
Esses
instrumentos foram e são importantes para a mudança que houve nos
últimos anos no panorama econômico e social do Nordeste e que
aconteceu por outras atitudes. Exemplo: o Governo do Ceará concebeu
e executa, desde o início dos anos 1990, uma política de recursos
hídricos que serviu de modelo para outros Estados. Foram construídas
várias grandes e médias barragens, uma das quais, a do Castanhão,
tem capacidade para represar 6,5 bilhões de m³ de água. Uma rede
de canais a céu aberto e de adutoras está unindo as bacias
hidrográficas mais importantes do Estado. O maior desses canais - o
que liga o Castanhão ao Porto do Pecém, com quase 400 km de
extensão, que garante o abastecimento das cidades da Região
Metropolitana de Fortaleza - está na sua quinta e última etapa,
devendo ficar pronto em meados do próximo ano.
Outros
Estados nordestinos tomaram o mesmo caminho. Em 1983, eu, com minhas
reportagens sobre a seca no Jornal do Brasil, e o Fernando Gabeira,
que produziu uma extensa reportagem abordando o mesmo tema na revista
IstoÉ, dividimos o primeiro Prêmio BNB de Imprensa. Hoje,
felizmente, a seca - sem produzir a tragédia humana de 27 anos atrás
- deixou de ser pauta prioritária das redações. O Prêmio BNB de
Imprensa trata, agora, de revelar o sucesso de micro e pequenas
empresas que já se matricularam no comércio exterior, e de
homenagear os avanços tecnológicos da indústria nordestina, seus
complexos portuários, a expansão de sua fruticultura, o aumento de
suas exportações, os investimentos na geração de energia limpa,
como a eólica, e na formação e na qualificação da mão de obra.
Que seja
a seca - quando ela acontecer, como agora - um evento natural com o
qual os nordestinos aprenderam a conviver. De tudo o que vi,
restou-me a certeza de que, de 1983 até aqui, o nordestino deixou de
ser um bicho sabido. E virou um sábio.
Foto e
texto: Delfim Vieira (Jornal do Brasil- 1983)
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