quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Política



Alberto Tosi Rodrigues
I. Resolver conflitos. II. O uso da força. III. Violento, mas legítimo. IV. Ciência política. V. Indicações de leitura. VI. Referências bibliográficas.

Resolver conflitos.

Não tem escapatória, não adianta cara feia.

Já foi decretado há muitos anos, e o decreto vale hoje mais do que nunca: “o homem é um animal político”, escreveu Aristóteles.

Desde então, tentaram muitas vezes, mas não conseguiram arranjar outro modo melhor de resolver as disputas de interesse geral. Se está em jogo alguma coisa sobre a qual não existe concordância de todos, podemos nos engalfinhar, estapear, arrebentar, bombardear, enfim, podemos até nos matar. E frequentemente nos matamos mesmo. Mas sempre que temos o bom senso de decidir que vamos resolver uma disputa sem nos matarmos uns aos outros, recorremos à política.

Claro que cada tempo, cada lugar, cada grupo, cada etnia, cada classe, cada povo e até mesmo cada pessoa vê a política por seu próprio prisma. Ela pode aparecer como algo próximo ou distante de nós, algo que acreditamos não dizer respeito a nossa vida ou algo que nos toca emocionalmente.

Para quem viveu 1940 numa pequena cidade do interior do Brasil, na condição de imigrante italiano, como meu avô, a política podia bem ser definida como a visita do delegado de polícia, que um dia inspecionou a casa e, para não sair de mãos abanando, confiscou o velho rádio de ondas longas. Afinal, o aparelho (que na verdade mal sintonizava a rádio local) poderia ser um perigoso meio de comunicação com o inimigo de guerra no além-mar. Para quem viveu 1963 na condição de uma respeitável senhora de classe média, abastada e católica, a política talvez pudesse ser melhor definida como a luta contra o perigo comunista que ameaçava apossar-se do Brasil, ou então, se fosse o membro de uma liga camponesa, a luta por “reformas de base” que diminuíssem as desigualdades sociais. Para quem viveu 1984, a política podia por certo ser definida como um grito emocionado, rasgado, que a plenos pulmões exigia eleições diretas para presidente da República. Não para depois, mas “já!” Para quem viveu 1992, a política podia ser definida como a indignação estampada num rosto pintado para a “guerra cívica”, vista como a revolta intransigente de estudantes muito jovens contra aqueles poderosos que roubaram e mentiram. E que todos queriam “fora!”

É estranho pensar assim, porque apesar dessas múltiplas apresentações possíveis, e de infinitas outras, política é sempre a mesma coisa. E os animais políticos são sempre os mesmos, isto é, nós todos. É mais ou menos como acontece na relação entre medicamento de marca e medicamento genérico. Um remédio pode ter várias marcas e apresentações diferentes, mas o que o distingue dos demais é seu princípio ativo.

A política tem muitas finalidades, muitos objetivos possíveis, na verdade tem tantos quantos forem aqueles que a praticam. O que faz crer, aliás, que os fins são dos praticantes e não da política, ela própria. Pode-se ter como fim a proteção dos cidadãos contra estrangeiros em momentos de guerra, a realização de reformas econômicas e sociais, a repressão de comportamentos desviantes, a mudança nos mecanismos de escolha de representantes, a punição de corruptos, e muitos, muitos outros.

Mas se você quiser entender o que, afinal, é a política, isso não é o mais importante.

O importante é o princípio ativo da política. É saber que a política é sempre o modo pelo qual chega-se a decidir algo que não é particular, mas que diz respeito a toda uma coletividade, algo que é público. Pois é certo que decidiu-se, de algum modo, que os italianos no Brasil deviam ser vigiados durante a guerra, que as reformas de base não seriam feitas, que os comunistas seriam reprimidos, que as eleições diretas não seriam para “já” e que o governante ladrão cairia fora.

Não é difícil imaginar, para quem se lembra de algum dos momentos citados acima, que as decisões foram tomadas ao final de uma disputa. As disputas geralmente têm vencedores e perdedores. Nas disputas, como se costuma dizer, “quem pode mais chora menos”.

Pergunta-se então: quem é aquele que “pode” mais? Quem é aquele que é mais capaz do que os outros de fazer com que os seus objetivos prevaleçam na disputa? Quem pode fazer com que as suas próprias finalidades, o seu próprio prisma de ver a política seja aceito por todos ou pelo menos pela maioria? Quem é capaz de transformar o seu ponto de vista numa decisão que valha para todos?

Ora, você sabe, é quem tem “poder”.

Mas esse poder, por sua vez, não dá numa árvore que se possa plantar em casa, nem a árvore dá uma frutinha que se pode congelar no freezer. Poder a gente conquista, e ainda assim só para fazer algumas coisas e não para outras. Quem “pode” não pode tudo. E, além do mais, assim como se ganha se perde. Se eu quero ter poder para fazer uma certa coisa, eu preciso não apenas conquistá-lo mas também conservá-lo para continuar fazendo.

Eu posso ser o presidente (no caso ficaria melhor “a presidente”) do fã clube do Fábio Jr. e com isso ter o poder de ficar com as toalhinhas autografadas que ele usa para enxugar o suor e depois joga para a platéia, e que as centenas de membros do fã clube coletaram no local do show. Mas se eu não guardar bem esse precioso troféu e as toalhinhas sumirem, é provável que na próxima escolha da diretoria do fã clube eu perca o cargo. Eu posso também me eleger vereador na minha cidade e com isso conquistar o poder de propor leis municipais, mas preciso renovar meu mandato a cada eleição se quiser continuar exercendo este poder. Para isso preciso entrar em disputa com outros que querem ter o mesmo poder que eu.

Por isso a política é geralmente descrita como a atividade que diz respeito à luta pelo poder, dentro de uma determinada associação de pessoas.

Não que o poder se concentre exclusivamente ali, mas é inegável que em sociedades complexas e organizadas como as que vivemos hoje em dia, a maior fatia de poder encontra-se nas mãos daqueles que ocupam o governo. Pois é do governo que emanam as decisões que são obrigatórias para todos, as decisões que somos obrigados a cumprir sob pena de sofrermos punições pela nossa eventual desobediência. No fã clube não há propriamente política, no estado há. No fã clube pode haver uma disputa pelo poder de ser o guardião das toalhinhas, ele pode até ter um estatuto que estabeleça como as toalhinhas devem ser guardadas, mas o fato é que ninguém pode me obrigar a fazer nada, porque se eu me cansar eu saio desse clubinho e ponto final. Já o governo do meu país, que é um Estado nacional, do qual eu faço parte não por escolha mas por nascimento, esse pode me obrigar sim.

Ora, mas o que me obriga? Que coisa é essa que é capaz de me fazer agir como eu não quero ou, pelo menos, agir de um modo que eu não agiria se não fosse obrigado?

A resposta é: a força. Ou, mais especificamente, quem me obriga é quem pode exercer violência sobre mim. Pode até ser que eu não seja alvo de violência física propriamente dita, mas se eu sei que esta possibilidade existe, é provável que eu aja conforme determinaram, mesmo contra minha própria vontade. Afinal, “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.



O uso da força.

Eu não sei se isso que estou dizendo faz algum sentido para você, caro leitor. Na verdade, tudo que foi dito até agora poderia ser resumido em algumas poucas frases:

Todos fazemos política, porque ela é um modo não violento de tentar resolver as disputas.
Os que fazem política têm múltiplas finalidades em vista, mas a política em si não se define pelos fins visados.
A política se define pelos meios empregados para se atingir  as diferentes finalidades.
Esses meios são os recursos de poder de que alguns dispõem para influenciar o comportamento dos outros.
Das disputas entre as diferentes finalidades, feitas com base nos recursos de poder de cada um, surgem as decisões que serão válidas para todos.
A política é então a luta pela conquista e manutenção do poder, pois quanto mais poder eu tiver, mais posso influenciar nas decisões.
Para regrar o processo de tomada de decisões e para impor a todos o cumprimento das decisões políticas, inclusive através do uso da força, constituiu-se uma entidade especializada chamada Estado.
O que caracteriza o poder político, portanto, é que, no limite, ele se baseia no uso da força física, da violência.
Bem, eu tentei resumir para facilitar, mas acho que agora compliquei as coisas. Nos pontos que enumerei acima há duas afirmações que, em princípio, parecem contraditórias.

Já reparou quais são?

Não? Então volte lá e leia de novo os oito pontos antes de continuar. Já voltou?

Tá bom... Eu vou dizer. É o seguinte: se a política é uma tentativa de resolução não violenta das disputas (como está dito no item 1), por que justamente o poder político é definido como aquele que tem a possibilidade de empregar a violência (como está dito no item 8)?

Responder a isso não é lá muito fácil. Especialmente porque a idéia que temos de política no mundo em que vivemos não combina muito com violência. Quando pensamos em política pensamos, por exemplo, nos deputados discutindo no parlamento. Tudo muito civilizado, muito educado. Adversários políticos sentam-se lado a lado, apertam as mãos. Até mesmo quando os ânimos estão exaltados, existe uma certa formalidade: “Vossa Excelência é um energúmeno!...” Poderíamos até pensar na política como violência se lembrássemos, por exemplo, das perseguições ou torturas cometidas por governos contra cidadãos durante certas ditaduras. Mas aí, como o próprio nome diz, são “governos de exceção”. A regra geral é que a política não se faça com base no uso constante de violência entre as pessoas. A política internacional poderia também ser vista como fonte de violência: invasão do Iraque, Bósnia, judeus e palestinos no Oriente Médio etc. Mas aí não podemos confundir política com guerra, apesar de que essas duas coisas têm evidentemente muito a ver uma com a outra. Aguente um pouco, vamos por partes.

Precisamos primeiro tentar entender qual violência é essa que faz parte do poder político, mesmo dentro de um determinado país, e mesmo que seja um país pacífico e livre. Eu acho que se formos capazes de desvendar esse segredinho, as coisas da política vão fazer mais sentido, tanto no nosso cotidiano quanto nos estudos mais acadêmicos.

Veja só: o que significa dizer que alguém tem poder?

Em primeiro lugar, o poder é sempre uma relação. Não dá pra ter poder sozinho. Eu só posso ter poder se for sobre alguém, sobre outra ou outras pessoas. Então daria pra dizer que uma relação de poder é uma relação de desequilíbrio de forças, uma relação assimétrica entre no mínimo duas pessoas. Se Américo é capaz de fazer com que Bonifácio faça alguma coisa que Bonifácio não faria se não fosse a vontade de Américo, então Américo tem poder sobre Bonifácio. Mas esse poder só funciona mesmo porque Américo decerto dispõe de algum recurso que pressiona Bonifácio a fazer isso. Por exemplo, Bonifácio pode ser uma pessoa de vida desregrada e Américo pode ter nas mãos um monte de fotos comprometedoras de Bonifácio. Aí um dia Américo insinua, na frente de Bonifácio, que suas botas novas estão muito sujas. Bonifácio “capta a mensagem” e no final de semana, mesmo odiando ter que fazer isso, lava as botas de Américo. Assim, Américo exerceu seu poder sobre Bonifácio. Mas isso só foi possível porque Américo tinha um plano, uma estratégia de emprego de seus recursos (as fotos comprometedoras). A estratégia era insinuar sua vontade e, se houvesse resistência de Bonifácio, ameaçar enviar as fotos comprometedoras à “patroa” de Bonifácio, deixando claro do que seria capaz em caso de recusa. Assim, o poder de Américo sobre Bonifácio só se exerceu de fato porque Américo tinha recursos em suas mãos e porque tinha um plano de emprego deles, usando-os contra a resistência que poderia ser oferecida por Bonifácio.

Nesse nosso exemplo, Bonifácio não fez a vontade de Américo por ter receio da violência que pudesse sofrer. Inclusive porque os recursos de Américo não lhe davam essa bola toda. Possuir fotos comprometedoras provavelmente não garantiria a Américo a chance de dar uns cascudos em Bonifácio impunemente. Além do mais, se a coisa engrossasse de verdade, no fim das contas Bonifácio poderia até chamar a polícia e dar queixa por agressão. Temos aqui uma relação de poder que não está baseada na violência.

Não é qualquer “poderzinho” que pode redundar, sem mais nem menos, no uso da força física. Essa estranha relação entre Américo e Bonifácio é uma relação de poder, mas não é uma relação política.

É uma relação privada, só entre os dois. Não diz respeito a um grupo, nem a uma associação de pessoas. Nem, muito menos, diz respeito a um Estado. Se uma relação privada como esta descamba para o uso da violência, nós aí temos um problema. Porque essas pessoas não vivem sozinhas no mundo, não moram numa ilha deserta. Elas vivem numa sociedade que tem regras. Regras que valem para todos. E entre essas regras há uma fundamental: a proibiçao do uso de violência privada.

Se não houvesse essa proibição, é provável que todos se agredissem mutuamente, e até se matassem, cada vez que quisessem uma coisa simples como botas limpas, e que outros se recusassem a limpá-las. Imagine o que não aconteceria se o objeto de disputa fosse algo mais suculento, como a posse de terras ou o recebimento de dividendos de uma empresa. Aí nossa vida viraria um inferno e todos estariam em risco permanente. Seria a “guerra de todos contra todos”, como disse o pensador inglês Thomas Hobbes, no século XVII.

É aí que está, então, o aparente paradoxo. Para vivermos juntos sem o uso contínuo da violência, como cidadãos, isto é, vivermos uma vida civil, vivermos civilizadamente, precisamos de regras que valham para todos. Mas, ao mesmo tempo, para que as regras sejam de fato obedecidas por todos (caso contrário não haveria sentido em haver regras), precisamos do uso da força. No limite, precisamos do uso da violência física, para obrigar os possíveis desobedientes a obedecerem as regras.

Precisamos então criar um tipo especial de relação entre nós, um tipo de relação que nos permita definir as nossas próprias regras de convivência, as nossas regras da vida civil, e que, ao mesmo tempo, nos permita obrigar todos a obedecerem tais regras, fazendo com que sejam punidos aqueles que não as obedecem. Sempre que falamos em obedecer regras e em punir quem as desobedece estamos falando numa relação de poder. Este tipo especial de relação, que permite a tomada de decisões que valham para todos e a punição dos desobedientes, é o poder político. Como já foi dito, o espaço social, o “lugar” no qual ele se materializa é uma associação especial de homens chamada Estado, cujo poder é exercido por um governo.

É por esta razão que dentre todas as formas de poder, apenas o poder político caracteriza-se por basear-se, em última instância, no uso da força física, da violência. Não estamos portanto falando de uma violência qualquer. Estamos falando do uso de uma violência exercida por uma entidade especial, por uma instituição humana encarregada por nós de exercer essa violência, de punir todos aqueles que, recusando-se a obedecer as regras, colocam nossas posses e nossa vida em risco. Esperamos do Estado que exerça a violência contra aqueles que, ao nos prejudicarem individual ou coletivamente, colocam também a convivência civil em risco.



Violento, mas legítimo.

Disso que eu acabo de dizer depreeendem-se duas coisas fundamentais:

Em primeiro lugar, o poder político - para que se exerça de forma duradoura e assim nos garanta uma convivência civil pacífica e prolongada – não pode basear-se exclusivamente, nem mesmo preponderantemente, no emprego de fato da violência física. Na relação entre aqueles que exercem o poder político e aqueles que se submetem a ele, isto e, na relação entre governantes e governados é preciso haver uma espécie de pacto, um acordo, um contrato. Não um contrato assinado com caneta BIC, como se fosse um contrato de locação de imóvel. Estamos falando de um pacto implícito, tácito, simbólico, que quando nascemos já está lá “assinado”, e do qual no entanto não podemos alegar ignorância, mesmo não tendo colocado nele nosso dedão com as digitais. Este pacto não quer dizer que nós temos que concordar com tudo que o Estado significa, ou que temos de gostar, achar bom e bonito tudo que o governo faz. Este pacto entre governantes e governados, este pacto simbólico de dominação social, significa apenas que temos a expectativa mútua de que as regras serão definidas e cumpridas e que a punição aos desobedientes não é aleatória, mas sim justifica-se de alguma maneira.

Enfim, vale a pena repetir, o poder político, que nas sociedades de hoje é exercido pelo Estado através do governo, caracteriza-se pela imposição de regras de convivência que se sustentam na possibilidade de uso da violência para fazer cumpri-las. Mas não qualquer regra que o governo decida baixar ou o uso da violência indiscriminada contra qualquer pessoa. Estamos falando de regras e de punições que se encaixem numa justificativa que possa ser compreendida e aceita como válida pela média das pessoas. As pessoas não precisam necessariamente concordar com a justificativa para o exercício do poder. Basta que compreendam e a aceitem como válida. Para usar o termo consagrado, o exercício do poder político, o exercício da dominação social, deve basear-se no pacto da legitimidade. Fora disso, estaremos diante da usurpação do poder, da tirania dos governantes, os quais não serão reconhecidos pelos governados como legítimos, isto é, como autorizados a exercerem a dominação, a exercerem o poder político. Nesse caso, só resta aos usurpadores impor seu domínio pela violência. E isso não pode durar para sempre. Geralmente, dura pouco. Por isso eu disse acima que o poder político não pode basear-se exclusivamente, nem mesmo preponderantemente, no emprego de fato da violência física, embora o recurso à violência legítima seja sua característica principal.

Então fica assim: o exercício do poder político por parte do Estado através do governo baseia-se, no limite, na possibilidade de uso da violência legítima.

Mas em segundo lugar há um ponto não menos importante. Ao mesmo tempo em que o uso dessa violência por parte do Estado deve ser autorizado, ser legítimo, devem também ser desautorizadas todas as formas de violência privada de cidadãos contra outros cidadãos. Isso significa que a violência pública deve ser não apenas legítima, mas também exclusiva, dentro de seu território de jurisdição. O Estado não pode tolerar formas concorrentes de violência, que colocam em risco justamente a função fundamental da violência pública legítima: garantir a continuidade da vida civil. É por esta razão que podemos dizer que o Estado nacional está em sério risco na Colômbia atualmente, já que a guerrilha ligada ao narcotráfico controla, por meio de violência ilegítima, uma fatia significativa do território colombiano. Pela mesma razão se costuma dizer que os traficantes dos morros do Rio de Janeiro constituíram um “Estado paralelo”, já que ninguém “sobe o morro” sem a autorização dos criminosos. Embora essa idéia de Estado paralelo seja conceitualmente equivocada, é inegável que o controle privado de áreas urbanas concorre com a autoridade pública e põe em risco a continuidade do exercício do poder legítimo em certos pontos do Brasil.

Política, portanto, é uma coisa que se faz dentro de um quadro configurado por inúmeros parâmetros. O “fazer política” das pessoas e das instituições é uma luta contínua para obter e para conservar poder político. E este poder político concentra-se, nos dias de hoje, no Estado. Com base nas regras estabelecidas no âmbito estatal é que podemos fazer política também na sociedade civil, através por exemplo de partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais, corporações, meios de comunicação e muitos outros canais.

Mas as coisas nem sempre foram assim. Este modo atual de fazer política não nos foi dado por alguma revelação divina, ou por mensagens de extra-terrestres mais evoluídos tecnologicamente. Ele constituiu-se historicamente. E para compreender como as coisas são nada melhor do que olhar para o modo como vieram a ser.

O mundo feudal era pulverizado. Os feudos eram administrados com base no mando privado dos senhores, que tinham o território e as pessoas que nele viviam como propriedade sua. A centralização política que houve na Europa Ocidental – e que deu origem ao Estado absolutista e, depois, ao Estado constitucional - foi a matriz do processo que redundou no modelo atual. Do século XVI ao XIX, o que houve ali foi uma mudança econômica, política e cultural sem precedentes. Os artesãos perderam para os comerciantes, que depois tornaram-se donos de empresas, o controle sobre a produção de bens materiais, dando origem às relações de produção capitalistas modernas, principalmente o assalariamento dos trabalhadores. Culturalmente, foi importante que o catolicismo medieval, que era dominante, tenha sido contestado pela Reforma protestante. Seria um pouco difícil desenvolver o capitalismo se todos acreditassem que emprestar dinheiro a juros levava o indivíduo pro inferno, como pregava o catolicismo de então. Ao mesmo tempo, os senhores feudais perderam o controle da administração dos territórios para os reis. As milícias privadas compostas pelos nobres leais aos senhores feudais perderam o controle sobre a guerra para os exércitos nacionais, que surgiram para defender as fronteiras dos territórios centralizados. Finalmente, as leis baseadas na tradição e na interpretação dos reis foram substituídas por normas escritas e racionais, de modo muito especial pelas Constituições dos novos Estados nacionais.

Foi por causa desta monumental mudança histórica que hoje podemos dizer que a política é uma tentativa de resolução não violenta das disputas, que ocorre no âmbito do Estado e baseia-se em regras definidas. Graças a ela estabeleceu-se a exclusividade estatal do uso da violência, que passou a ser entendida como legítima. Graças a ela foi possível para o sociólogo alemão Max Weber definir o Estado como “o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um território”.



Ciência política.

Bem, se política é isso, ciência política é o estudo disso. Se você é ou vier a ser um estudante de ciências sociais ou de direito, por exemplo, você verá que os temas apresentados nos programas das disciplinas universitárias de ciência política procuram recobrir questões ligadas ao que procurei apresentar aqui.

Fatalmente você estudará dois tipos de coisas:

Idéias políticas. Trata-se de um conjunto de autores clássicos ou contemporâneos que refletiu - desde a antiguidade, passando pelo período medieval e pela modernidade – sobre as possíveis formas de governo, sobre o Estado, sobre as leis e sobre as qualidades e defeitos da liderança política. Gente como Aristóteles, Maquiavel, Hobbes, Locke, Rousseau, Montesquieu, Tocqueville, Marx, Weber e muitos outros. Eles escreveram suas obras tentando apresentar a política como eles achavam que a política de fato é, ou como achavam que a política deveria ser. Suas idéias políticas são hoje retomadas e estudadas para que possamos construir nosso próprio conjunto de ferramentas teóricas, metológicas e analíticas sobre a política e para que percebamos que as idéias interagem com os fatos históricos. Assim como o pensamento deles foi influenciado pelo que ocorria na época de cada um, eles próprios influenciaram seus contemporâneos com seu modo de ver a política.

Instituições e comportamentos políticos. Trata-se da análise da política em funcionamento, tal como a acompanhamos no dia-a-dia. A questão aqui é desenvolver um conjunto de ferramentas analíticas e metodológicas sistematizadas pela ciência política do século XX, combinada com a busca de dados empíricos sobre as diferentes realidades políticas, no âmbito do Estado ou da sociedade civil. Nessa perspectiva busca-se compreender o funcionamento de partidos políticos, sistemas eleitorais, as ideologias políticas, os parlamentos, a atuação do Judiciário, estruturas sindicais, movimentos populares urbanos ou rurais, a ação de organizações empresariais de caráter político, os lobbyes e muitos outros tópicos.
A ciência política que praticamos hoje, grosso modo, é uma combinação da filosofia política (idéias e concepções sobre a política, acumuladas desde a antiguidade até hoje) com a sociologia política (uma abordagem mais científica que sistematiza ferramentas e preocupa-se principalmente com a análise empírica da política, desenvolvida a partir do século XIX, especialmente no XX).

Seja como for, estudando ciência política você estará às voltas com os mistérios do poder político e passará a maior parte do seu tempo de estudos tentando descobrir se existe alguma lógica por trás das coisas inimagináveis que alguns políticos profissionais costumam fazer. Pode acreditar: é divertido.



Indicações de leitura

Tentarei responder aqui à seguinte pergunta, que me foi feita, indiretamente, pelo organizador deste volume: se você resolvesse passar o resto da vida numa ilha perdida e deserta da Melanésia e só pudesse carregar consigo cinco livros clássicos sobre política, quais você levaria?

O primeiro da lista, com direito ao lugar de honra da minha mala, seria O Príncipe, de Nicolau Maquiavel. O volume, que à primeira vista pode parecer aos deavisados um manual de auto-ajuda para nobres guerreiros, na verdade é a primeira tentativa de tratar a política como ela é: um jogo sofisticado, delicado e complexo, que para ser entendido (por quem joga ou por quem observa) exige que prestemos atenção às qualidades e à sorte dos jogadores, à sua perspicácia e à sua força e, principalmente, aos recursos de poder que estão em jogo. Eu levaria também A Política, de Aristóteles, que propôs a mais influente classificação das formas de governo. Ela cruza duas faces do governo: o modo como se governa (bem ou mal) e o número de pessoas que exercem o governo (uma só, poucas ou muitas). Abriu com isso uma tradição de análise e de valoração dos governos que é útil até hoje. Claro que não deixaria de fora Do Cidadão (De Cive), de Thomas Hobbes, onde o autor expõe como seria a vida num mundo sem regras, que ele chama de “estado de natureza” e como isso obrigaria os homens a firmarem entre si o pacto de dominação de que falamos acima, para fundar um governo civil. Não esqueceria ainda Democracia na América, de Alexis de Tocqueville, onde aprendemos que a democracia não é simplesmente o governo da maioria. Ela é apresentada como um regime que exige que a própria sociedade (e não apenas o governo) seja organizada e plural. Completando o pacote, eu levaria meu texto predileto, Sociologia do Estado, de Max Weber. Ali temos uma descrição tipológica e, ao mesmo tempo, histórica, de como se desenvolveram os principais contornos do Estado moderno, até que ele pudesse ser definido como “o monopólio do uso legítimo da força num território”.

Se sobrasse um espaçozinho na mala (eu até deixaria de fora algumas meias), levaria duas obras de referência, com autores qualificados, que não me deixariam na mão na hora das dúvidas: o Dicionário de Política, organizado por Norberto Bobbio com verbetes de vários autores, abrangendo um amplo leque de temas da política; e a Teoria Geral da Política, com textos de Norberto Bobbio, organizado por Michelângelo Bovero, que comenta as lições dos grandes clássicos.

Referências bibliográficas

ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

BOBBIO, N. (org.) Dicionário de Política. 2 vols. Brasília: Ed. UnB, 1993.

BOBBIO, N. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Organizado por Michelângelo Bovero. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

HOBBES, Th. Do Cidadão. Tradução, apresentação e notas de Renato Janine Ribeiro. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

MAQUIAVEL, N. O Príncipe. Tradução de Lívio Xavier; Prefácio de Isaiah Berlin. São Paulo: Ediouro, 2002.

TOCQUEVILLE, A. de. A Democracia na América. Tradução de Eduardo Brandão; Prefácio de François Furet. 2 vols. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

WEBER, M. A instituição estatal racional e os partidos políticos e parlamentos modernos (Sociologia do Estado). In: _____ Economia e Sociedade. Vol. 2. Brasília: Ed. UnB, 1992.

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