Anos atrás, visitando o campus da UnB – Universidade de Brasília com
uma professora norte-americana, perguntei qual a diferença da paisagem
arquitetônica do nosso campus para um campus nos EUA. Esperei que dissesse:
“São parecidos”. Mas, depois de olhar ao redor, ela disse: “Não têm negros”.
Respondi que no Brasil, como também nos EUA, os negros não têm boas escolas na
educação de base. Ela perguntou: “Por que não adotam cota para negros, como nos
EUA?”.
Na próxima semana, o Brasil completará 124 anos da abolição sem ter
embaixadores negros. Atualmente há no Congresso Nacional apenas um senador
negro e 43 deputados federais que assumiram serem afrodescendentes; temos
apenas 2% de médicos, 10% de engenheiros e 1% de professores universitários que
podem ser considerados negros.
Os Estados Unidos já elegeram um presidente negro, mas o Brasil
dificilmente terá um presidente negro nas próximas décadas.
Na semana passada, depois de nove anos de adotada pela UnB, as cotas
raciais foram reconhecidas como legais pelo STF – Supremo Tribunal Federal.
Nesse período, três mil alunos foram admitidos pela cota racial na UnB e mil
concluíram seus cursos, graças ao ingresso usando as cotas.
Todos os estudos mostram que esses alunos tiveram um desempenho, no
mínimo, equivalente à média dos demais alunos. Isso se explica porque todos os
alunos beneficiados pelas cotas são necessariamente aprovados no vestibular.
Apesar disso, por quase 20 anos, um intenso debate vem sendo feito
entre os que são a favor e os que são contrários a esse sistema, porque até
hoje não houve entendimento correto do instituto das cotas raciais e seu
propósito, nem entre os favoráveis, nem entre os opositores.
Os opositores dizem, com razão, que este é um “jeitinho” equivocado,
porque a verdadeira solução para resolver a desigualdade racial na universidade
seria uma educação de base de qualidade para todos. Realmente a maneira correta
de resolver esse problema é a educação de base com qualidade e igual para
todos.
Temos bons jogadores de futebol negros porque a bola é redonda para
todos, mas nossas escolas são redondas apenas para os poucos que têm renda para
cursar uma boa escola no ensino fundamental e no ensino médio.
Mas fazer todas nossas escolas redondas, com qualidade, e dar resultado
na mudança da cor da cara da elite serão necessários 20 anos. Isso se nós
estivéssemos fazendo hoje o nosso dever de casa para mudar a educação. E não
estamos.
Tanto os que são contrários às cotas raciais, quanto àqueles
favoráveis, enfocam o assunto pelo lado individualista de oferecer uma escada
social a um jovem negro. Continuam pensando que as cotas visam beneficiar o
aluno que obtém a vaga.
Não percebem o papel da cota racial como o caminho para o Brasil apresentar
com orgulho uma sociedade com elite tão multirracial quanto seu povo.
A cota social beneficia o aluno, a cota racial beneficia o Brasil,
possibilitando o ingresso de jovens negros na carreira profissional de nível
superior. Certamente jovens escolhidos entre aqueles de classe média, que
concluíram o ensino médio e passaram no vestibular porque foram bem preparados
em uma boa escola, portanto provavelmente não-pobres.
Serão pessoalmente beneficiados, mas prestarão um serviço patriótico ao
ajudarem, pelo estudo, a mudar a cor da cara da elite brasileira.
A cota racial para a universidade nada tem a ver com a cota social.
Esta atenderia jovens pobres para compensá-los pelo que lhes negamos na
infância. É um benefício justo; a cota racial não é um assunto de justiça, é um
assunto de dignidade nacional; não é social, é patriótica.
Os que lutam pela cota racial nas universidades não lutam pela
erradicação do analfabetismo entre adultos negros, nem para que os negros
pobres tenham escolas com a mesma qualidade dos ricos brancos.
E aqueles que defendem as cotas sociais no lugar das raciais não
defendem cotas sociais no ensino fundamental e médio, nos colégios federais e
mesmo nas escolas particulares de qualidade. Esta sim seria cota social.
A cota social na Educação de Base nunca atraiu os defensores da cota
racial nem aqueles que se opõem a ela e que usam a ideia de social contra a de
racial. Os que defendem cotas sociais para as universidades, ao invés das cotas
raciais, provavelmente ficarão contra as cotas sociais nas boas escolas da
educação de base, obrigando as escolas caras a receberem alunos pobres, sem
mensalidade ou com uma bolsa do tipo Prouni.
Cristovam Buarque é professor da UnB e senador pelo PDT-DF.
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