Isto, isso e aquilo: uma conversa sobre pronomes demonstrativos
THAÍS NICOLETI DE CAMARGOColunista da Folha Online
O uso dos pronomes demonstrativos costuma ser objeto de dúvida entre aqueles que escrevem. Afinal, quando se devem empregar as formas "este" ou "esse"? Existe diferença entre uma e outra?
Ora, as formas "este", "esse" e "aquele", bem como suas flexões, indicam a posição dos seres no espaço e relacionam-se às pessoas do discurso. "Este" indica proximidade de quem fala (primeira pessoa), "esse" indica proximidade do interlocutor (segunda pessoa) e "aquele" assinala distanciamento em relação às duas primeiras pessoas.
Dizemos, por exemplo, "Este livro que eu tenho em mãos é excelente", mas "Eu já li esse livro que você está lendo". Caso não esteja perto de nenhuma das duas pessoas, o livro passa a ser determinado pelo pronome "aquele". Assim: "Você já leu aquele livro?".
Esses pronomes demonstrativos, na fala, são, por vezes, acompanhados de gestos, o que é mais freqüente quando se empregam as formas neutras "isto", "isso" e "aquilo" em sua função dêitica, ou seja, como palavras sem referencial fixo. Quando alguém pergunta, por exemplo, "Que é isto?", "Que é isso?" ou "Que é aquilo?", a escolha do demonstrativo depende da posição daquilo a que se refere o pronome. Em outras palavras, os pronomes "isto", "isso" e "aquilo" não significam nada em si mesmos; seu significado é móvel. No título do filme "Que é isso, companheiro?", o pronome "isso" alude a uma atitude do interlocutor (no caso, o "companheiro"). Quando cantava "Que país é este?", Renato Russo naturalmente se referia ao seu próprio país (algo como "que país é este em que eu vivo?").
A idéia de lugar expressa por tais pronomes pode ser reforçada por advérbios: "isto aqui", "isso aí", "aquilo lá". Tais advérbios são igualmente dêiticos, já que sua significação depende da situação de emprego. Observe que eles também se relacionam às pessoas do discurso. "Aqui" é o lugar onde se encontra a pessoa que fala (primeira pessoa do discurso); "aí" é o lugar do interlocutor (segunda pessoa do discurso) e "lá" é o lugar da terceira pessoa (ele).
As dúvidas mais freqüentes, no entanto, dizem respeito ao uso desses pronomes em sua função anafórica, ou seja, nas situações em que operam remissões intradiscursivas. Trata-se então de empregá-los para fazer alusão a termos que já foram ou que ainda serão mencionados. Usam-se as formas com "ss" para remeter àquilo que já foi dito e as formas com "st" para apontar para o que será dito posteriormente. Assim: "Ouça isto: nunca me decepcione!" e "Que nunca a decepcionasse. Foi isso o que ela lhe pediu".
Essa é a distinção básica entre as duas formas, mas há outras situações de emprego que convém assinalar. Por exemplo, quando nos referimos ao próprio texto que estamos escrevendo, usamos "este". Vale lembrar os velhos modelos de carta, hoje tão inusuais, mas, ainda assim, presentes na nossa memória: "Espero que estas linhas o encontrem gozando de boa saúde...". "Estas linhas" são aquelas que ora escrevo.
As formas "este" e "aquele" (e, naturalmente, as suas flexões) são as que se empregam no aposto distributivo em períodos do tipo: "O senador e o deputado vieram. Este, de avião; aquele, de helicóptero". Ora, quem veio de avião foi o deputado e quem veio de helicóptero foi o senador (o pronome "este" retoma o termo imediatamente anterior, em oposição ao pronome "aquele", que retoma o elemento mais distante). O ideal nesse tipo de período é sempre usar o pronome "este" antes do pronome "aquele", pois "este" retoma o termo anterior por causa da proximidade que tem dele. Convém evitar, assim, uma construção como: "O senador e o deputado vieram. Aquele, de helicóptero; este, de avião".
É comum que o pronome "este" que recupera o termo imediatamente anterior venha seguido da palavra último: "Em campo, o União São João se juntou ao grupo de rebaixados, que tinha o Inter de Limeira, o Sorocaba e o União Barbarense. Mas este último pode se salvar caso o tribunal da federação paulista tire 24 pontos do América".
Mesmo quando não existe a oposição entre dois termos mencionados anteriormente, a forma "este" (como pronome substantivo) recupera o último elemento. Veja o exemplo, extraído de uma notícia de jornal: "'Se a Europa abrir mão de suas ambições políticas e sociais, o modelo ultraliberal terá o caminho livre', declarou Chirac ao lado de Schröder. Este acrescentou que, 'se a França rejeitar a Constituição, 50 anos de construção européia, que garantiram a paz e a harmonia no continente, serão seriamente prejudicados'".
Podem ainda os demonstrativos indicar proximidade ou distância temporal. Nessa chave de oposição, entra o par "este"/"aquele". Assim, "esta noite" opõe-se "àquela noite". "Aquela noite" está situada num passado distante (ainda que subjetivamente: "Você ainda se lembra daquela noite?"); "esta noite" pode ser a de ontem ou a de hoje, dependendo do contexto: "Esta noite foi muito fria" (passado recente) ou "Esta noite será muito fria" (futuro próximo). O dia, o mês ou o ano em que nos encontramos, por exemplo, são antecedidos de "este" ("este ano", "esta semana" etc.).
Há ainda o uso afetivo dos pronomes demonstrativos, que aparece em expressões como "Tive um dia daqueles!" ou em locuções já cristalizadas no idioma ("ora essa", "essa, não!" etc.).
A seguinte declaração de um artista popular também ilustra o uso afetivo dos demonstrativos: "É estranha essa coisa de inspiração. Vai nascendo sabe lá de onde e, de repente, está bem na nossa frente". O uso do pronome "essa" (e não "esta") parece reforçar a idéia de que a inspiração é algo que vem de fora ("sabe lá de onde"), é algo estranho que toma conta do artista.
O emprego afetivo das palavras sempre rende uma boa discussão. Houve, há algum tempo, um presidente da República que declarou publicamente ter nascido com "aquilo" roxo, naturalmente uma marca distintiva de seu caráter ou de sua personalidade, um indício de coragem, valentia, ousadia... O interessante é que ninguém precisou perguntar o que significava o dêitico "aquilo" no contexto. Na verdade, o demonstrativo foi usado como um eufemismo, mas esse é um assunto para outra coluna.
Thaís Nicoleti de Camargo, consultora de língua portuguesa, é autora de "Redação Linha a Linha" (Publifolha), "Uso da Vírgula"(Manole) e "Manual Graciliano Ramos de Uso do Português" (Secom-AL) e colunista do caderno "Fovest" da Folha. E-mail: mailto:thaisncamargo@uol.com.br |
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