segunda-feira, 7 de maio de 2012

Nova Era, já ouviu falar?


PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A CULTURA
PONTIFÍCIO CONSELHO PARA O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO



INTERVENÇÃO DO CARDEAL PAUL POUPARD
NA APRESENTAÇÃO DE UM DOCUMENTO
SOBRE A "NEW AGE"



1. Da New Age (Nova Era) já se falou muito e continuar-se-á a falar. Quanto a mim, pedi a um especialista, Jean Vernette, que fizesse uma análise dos Movimentos da New Age para a terceira edição do meu Grande Dizionario delle Religioni (Grande Dicionário das Religiões), que os descreve com os seguintes termos:  "Os Movimentos da New Age, como um grande rio fluente, com múltiplos afluentes, representam uma forma típica de sensibilidade religiosa contemporânea, como uma nova religiosidade que reveste muitos caracteres da Gnose eterna" (Piemme, 2000, pp. 1497-1498). Além disso, à New Age foram dedicados recentemente dois números especiais da Revista trimestral de cultura religiosa, intitulada Religioni e sette nel mondo [Religiões e seitas no mundo] (1996, nn. 1-2). No meu editorial, apresentei este fenómeno recorrendo às seguintes expressões:  "O fenómeno da New Age, juntamente com muitos outros Movimentos religiosos, constitui um dos desafios mais urgentes para a fé cristã. Trata-se de um desafio religioso e, ao mesmo tempo, cultural:  a New Age propõe teorias e doutrinas sobre Deus, o homem e o mundo, que são incompatíveis com a fé cristã. Além disso, a New Age é o sintoma de uma cultura em profunda crise e, ao mesmo tempo, uma resposta errónea a esta situação de crise cultural:  às suas inquietações e interrogações, às suas aspirações e esperanças" (Religioni e sette nel mondo, 6 [1996], pág. 7).

Hoje, juntamente com Sua Ex.cia Rev.ma D. Michael Louis Fitzgerald, Presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso, tenho a honra de apresentar um Documento sobre este fenómeno, elaborado pelo Rev.do Pe. Peter Fleetwood, ex-Oficial do Pontifício Conselho para a Cultura, e pela Dra. Teresa Osório Gonçalves, do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso. Portanto, trata-se do fruto de uma autêntica e longa colaboração interdicasterial, precisamente com vista a ajudar a responder "com docilidade e respeito", como já recomendava o Apóstolo Pedro (1 Pd 3, 15), a este desafio religioso e, ao mesmo tempo, cultural.

2. Hoje a cultura ocidental, actualmente seguida de muitas outras culturas, está a ser atravessada por um sentido da presença de Deus, quase instintivo àquilo que muitas vezes se chama visão mais "científica" da realidade. Tudo deve ser explicado segundo os termos das nossas experiências quotidianas. Qualquer coisa que faça pensar nos milagres, torna-se imediatamente um  motivo  de  suspeita.  Assim,  todos os  gestos  e  os  objectos  simbólicos, conhecidos como sacramentais, outrora parte da práxis religiosa quotidiana de todo o católico, hoje são, no panorama religioso, muito menos evidentes do que antes.

3. Os motivos desta transformação são numerosos e diversos, mas todos fazem parte daquela passagem cultural geral das formas tradicionais de religião a expressões mais pessoais e individuais, daquilo que agora se define como "espiritualidade". Ao que parece, na origem desta transformação existem três motivos diferentes. O primeiro consiste na sensação de que as religiões tradicionais ou institucionais não podem dar aquilo que outrora se afirmava que podiam oferecer. Na sua visão do mundo, algumas pessoas não conseguem nem sequer encontrar espaço para acreditar num Deus transcendente pessoal, e a experiência pessoal de muitos indivíduos levou-os a perguntar se este Deus tem o poder de realizar transformações neste mundo, ou até mesmo se Ele existe. As experiências negativas que investiram o mundo inteiro fizeram com que algumas pessoas se tornassem muito cínicas no que diz respeito à religião:  penso em acontecimentos terríveis, como no Holocausto e nas consequências da bomba atómica, lançada sobre Hiroxima e Nagasáqui, no final da segunda guerra mundial. Dei-me conta disto pessoalmente, durante a minha recente viagem a Nagasáqui, quando tive o privilégio de rezar, mas senti-me totalmente incapaz de encontrar palavras, diante do monumento à memória daquelas pessoas cujas vidas foram aniquiladas ou comprometidas para sempre, naquele mês de Agosto de 1945. Hoje, a ameaça de uma guerra no Médio Oriente traz-me à mente as recordações do meu pai, socorrista durante a segunda guerra mundial. Aquilo que ele me contava sobre os horrores da guerra faz-me compreender mais facilmente as dúvidas das pessoas acerca da existência de Deus e da religião. A confusão de muitos indivíduos diante do sofrimento dos inocentes, explorada também por determinados Movimentos, explica em parte a fuga de alguns crentes para as fileiras dos mesmos.


4. Há outro motivo para explicar uma certa inquietude e uma determinada rejeição da Igreja tradicional. Não devemos esquecer que na antiga Europa as religiões pagãs pré-cristãs eram muito fortes e, com frequência, havia conflitos indecorosos, ligados à mudança política, mas inevitavelmente tachados de opressão cristã das antigas religiões. Um dos mais significativos desenvolvimentos naquele que se poderia definir como o campo "espiritual" no século passado, em maior ou menor medida, foi o retorno às formas pré-cristãs de religião. As religiões pagãs desempenharam um papel notável na defesa de algumas das mais violentas ideologias racistas da Europa, revigorando desta maneira a convicção segundo a qual certas nações têm um papel histórico de alcance mundial, a ponto de terem o direito de submeter outros povos, e isto comportou quase inevitavelmente um ódio pela religião cristã, considerada como recém-chegada ao cenário religioso. A complexa série de fenómenos, conhecidos com o termo de religiões "neopagãs", revela a necessidade, sentida por algumas pessoas, de inventar novos modos de "contra-atacar" o cristianismo e voltar a uma forma mais autêntica de religião, mais intimamente ligada à natureza e à terra. Por isso, deve reconhecer-se que não há lugar para o cristianismo na religião neopagã. Quer se queira, quer não, verifica-se uma luta para conquistar as mentes e os corações das pessoas na relação entre o cristianismo, as antigas religiões pré-cristãs e as suas "primas" de desenvolvimento mais recente.

5. O terceiro motivo, na origem de uma decepção bastante difundida no que se refere à religião institucional, deriva de uma crescente obsessão na cultura ocidental, pelas religiões orientais e os caminhos da sabedoria. Quando se tornou mais fácil viajar fora do seu próprio território, os europeus aventureiros começaram a explorar lugares que antes conheciam somente através das páginas de antigos textos. O fascínio do exótico colocou-os numa relação mais estreita com as religiões e as práticas esotéricas de várias culturas orientais, do Antigo Egipto à Índia e ao Tibete. A convicção crescente de que existe uma certa verdade de base, um núcleo de verdade no coração de toda a experiência religiosa, levou à ideia de que se podem e se devem acolher os elementos característicos das diversas religiões para chegar a uma forma universal de religião. Uma vez mais, neste empreendimento há pouco espaço para as religiões institucionalizadas, em particular o hebraísmo e o cristianismo. Vale a pena recordá-lo, na próxima vez que tiverdes a ocasião de observar um anúncio publicitário relativo ao budismo tibetano ou a qualquer tipo de encontro com um xamanista, coisas estas que podereis observar em qualquer capital europeia. O que me preocupa é o facto de que muitas pessoas, comprometidas em tais géneros de espiritualidade oriental ou "indígena", não estão completamente conscientes do que se oculta por detrás do convite inicial para participar nestes encontros. Além disso, é digno de nota o facto de que, desde há muito tempo, existe muito interesse pelas religiões esotéricas nalguns círculos maçónicos que visam uma religião universal. O Iluminismo promovia a ideia segundo a qual era inaceitável que existissem tantos conflitos e se fizessem tantas guerras em nome da religião. Não posso senão estar de acordo com isto. Porém, seria desonesto deixar de reconhecer uma difundida atitude anti-religiosa que se desenvolveu a partir da originária preocupação de garantir o bem-estar  à  humanidade.  Também neste caso, considera-se com frequência como um conflito religioso aquele que, na realidade, não é senão um embate de natureza política, económica ou social.

6. O espírito desta nova religião universal é explicado mais claramente, de maneira muito popular, no "musical" Hair (1960) quando, ao público do mundo inteiro, se disse que "esta é a aurora da Era do Aquário", uma Era fundamentada sobre a harmonia, a compreensão e o amor. Em termos astrológicos, a Era dos Peixes foi identificada com o período em que o cristianismo teria predominado, mas esta Era, ao que parece, deveria terminar depressa, para dar lugar à Era do Aquário, quando o cristianismo perderia a sua influência, abrindo caminho para uma religião universal mais humana. Uma boa parte da moral tradicional deixaria de ter lugar na nova Era do Aquário. O modo de pensar das pessoas seria transformado completamente e já não existiriam as antigas divisões entre homens e mulheres. Os seres humanos deveriam ser sistematicamente chamados a assumir uma forma de vida andrógina, em que ambos os hemisférios do cérebro são oportunamente utilizados de forma harmónica, e não divididos, como agora.

7. Quando vemos e ouvimos a expressão New Age, é importante recordar que, originariamente, ela se referia à Nova Era do Aquário. O Documento que hoje vos é apresentado constitui uma resposta à necessidade sentida pelos Bispos e pelos fiéis em diversas regiões do mundo. Foram eles que pediram muitas vezes ajuda para responder melhor a este fenómeno, hoje omnipresente. O próprio título deste Documento esclarece, desde o começo, que o Aquário nunca poderá dar aquilo que Jesus Cristo pode oferecer. O encontro entre Jesus Cristo e a samaritana, no poço de Sicar, narrado pelo Evangelho de João, é o texto-chave que orientou a reflexão durante a preparação do relatório provisório sobre a New Age, que agora vos é apresentado. Como se pode ver, o Documento não está de modo algum destinado a ser uma declaração definitiva sobre este tema. Trata-se de uma reflexão pastoral, destinada a ajudar os Bispos, catequistas e quantos estão comprometidos nos vários programas de formação da Igreja, com vista a identificar as origens da New Age, para ver de que forma ela consegue influenciar a vida dos cristãos, e para elaborar meios e métodos capazes de enfrentar os numerosos e diversos desafios que a New Age está a lançar à comunidade cristã, nas regiões do mundo onde se encontra presente. Pode tratar-se também de um desafio para os que se sentem cristãos, tentados por aquilo que a New Age afirma a propósito de Jesus Cristo, para reconhecer as inúmeras diferenças entre o Cristo cósmico e o Cristo histórico. Em última análise, este Documento é um ulterior fruto da atenção da Igreja pelo mundo. Ele nasce do dever que a Igreja tem de permanecer fiel à Boa Nova da vida, da morte e da ressurreição de Jesus Cristo, que oferece verdadeiramente a água da vida a todos aqueles que se aproximam dele com a mente e o coração abertos.

8. A natureza e o alcance do Documento serão melhor entendidos, se eu vos explicar de que maneira ele foi escrito. Existe uma Comissão interdicasterial de estudo que se ocupa de seitas e de novos movimentos religiosos. Fazem parte desta Comissão os Secretários dos Pontifícios Conselhos para a Cultura, para o Diálogo Inter-Religioso e para a Promoção da Unidade dos Cristãos, bem como da Congregação para a Evangelização dos Povos. Para preparar este Documento, os Oficiais dos quatro mencionados Dicastérios do Vaticano, encarregados da redacção do texto, foram coadjuvados por um Oficial da Congregação para a Doutrina da Fé.

Assim, é claro que a Santa Sé viu neste trabalho um importante projecto a realizar correcta a cuidadosamente. Foi necessário um longo período de tempo, antes que o Documento fosse divulgado. Todavia, faço votos a fim de que ele suscite reflexões entre os Bispos e nas comunidades católicas e cristãs de todos  os  tipos.  Se  ele  for  substituído por um texto melhor e de índole mais definitiva, significará que alcançou a sua  finalidade,  estimulando  quantos estão comprometidos na pastoral e as pessoas que trabalham com eles, a reflectir sobre este tema de maneira teológica.

9. O Documento quer encorajar os seus leitores a fazerem o melhor que puderem para entender correctamente o fenómeno da New Age. E isto exige uma atitude aberta... Contudo, gostaria de dizer que poderiam verificar-se queixas da parte de cristãos que, ao lerem este Documento, observarem que algumas formas actuais de espiritualidade, em que estão comprometidos, são objecto de crítica por parte do Documento. Já é problemático o próprio facto de recorrer ao uso do termo New Age para definir este fenómeno. Por isso, alguns preferem utilizar o termo New Age mas, falando sinceramente, na minha opinião trata-se apenas de um afastamento do problema, do ocultamento do mesmo com o nevoeiro terminológico. O facto de que o termo inclui muitas coisas indica também que nem todos aqueles que adquirem produtos da New Age ou afirmam que obtêm algum lucro de uma terapia da New Age abraçaram efectivamente a New Age. Por conseguinte, é necessário um certo discernimento, tanto no que se refere aos produtos com a etiqueta da New Age, como no que diz respeito àqueles que, em maior ou menor medida, poderiam ser considerados "clientes" da New Age. Clientes, devotos e discípulos não são a mesma coisa. Honestidade e integridade exigem que  sejamos  muito  prudentes  e  que não generalizemos, julgando com muita facilidade.

10. Como conclusão, gostaria de dizer simplesmente que a New Age se apresenta como uma falsa utopia para responder à profunda sede de felicidade do coração humano, à mercê da dramaticidade da existência e insatisfeito com a profunda imperfeição da felicidade moderna. A New Age apresenta-se como uma resposta enganadora à esperança mais antiga do homem, a esperança de uma Nova Era de paz, de harmonia e de reconciliação consigo mesmo, com os outros e com a natureza. Esta esperança religiosa, tão antiga como a própria humanidade, constitui um apelo que brota do coração dos homens, especialmente em tempos de crise. O breve Documento agora apresentado ajudará a compreender melhor este fenómeno, a discernir entre as propostas existentes e a suscitar na comunidade cristã um renovado compromisso a anunciar Jesus Cristo, Portador da Água Viva.

Estou impaciente por seguir o debate que, sem dúvida, o nosso Documento suscitatá, enquanto agradeço sinceramente a todo o grupo de especialistas, de modo particular ao Pe. Peter Fleetwood e à Dra. Teresa Osório Gonçalves, que trabalharam com energia e afã para o poderem redigir.



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