O movimento negro brasileiro luta há décadas pela adoção de políticas de inclusão e conseguiu, na quinta-feira uma importante vitória no Superior Tribunal Federal (STF). A suprema corte decidiu, por unanimidade, que as cotas raciais nas universidades brasileiras estão em conformidade com a Constituição.
Ainda antes da decisão, a Unegro (União de Negros Pela Igualdade), instituição fundada em 1988 em Salvador, Bahia, havia pedido ao STF que julgasse de maneira a corrigir a omissão do Estado ao longo dos anos. "O papel assumido pelo Estado brasileiro ao longo da história nacional foi o de tratar igualmente os desiguais, ignorando a imensa dívida social a ser resgatada" dizia carta da instituição.
Segundo o diretor nacional de comunicação da Unegro, Alexandre Braga, cerca de 180 instituições de ensino adotam alguma medida de inclusão para negros, mulheres, indígenas ou pessoas de baixa renda. "Depois dessa decisão do STF, vamos cobrar mais investimentos públicos na educação básica e na capacitação dos estudantes", declarou Braga à DW Brasil.
A Educafro, entidade que promove a inclusão educacional de negros, também celebrou o resultado. Para o fundador e coordenador da instituição, frei Davi, o próximo passo é ampliar o número de universidade que adotam medidas inclusivas. "É impossível fazer política pública sem considerar a especificidade do povo negro", disse.
A representação das Nações Unidas no Brasil também se manifestou a favor da adoção de políticas inclusivas. Em carta divulgada nesta quinta-feira, a ONU lembrou os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística(IBGE), divulgados em 2009, segundo os quais cerca de 70% da população considerada pobre é negra, enquanto entre os 10% mais ricos, apenas 24% são negros.
"O Sistema das Nações Unidas no Brasil reconhece os esforços do Estado e da sociedade brasileiros no combate às desigualdades e na implementação de políticas afirmativas para a consecução da igualdade de fato, consolidando, assim, o alcance dos objetivos de desenvolvimento do País", diz a carta.
A decisão
A reserva de vagas para negros e pardos em universidades federais não fere a Constituição brasileira e, segundo o STF, poderá ser aplicada em todo o ensino público. A corte anunciou a decisão unânime na noite desta quinta-feira, após dois dias de julgamento.
O ministro Ricardo Lewandowski, relator do processo, declarou em seu voto que, apesar de a Constituição Brasileira dizer que todos são iguais perante a lei, há, ainda hoje, uma desigualdade na prática. Ele lembrou que o número reduzido de negros que exercem cargos de destaque é resultado do que chamou de "discriminação histórica" sofrida por esse grupo. Ações como o sistema de cotas nas universidades seriam, segundo ele, uma forma de compensar essa desigualdade.
A reserva de cotas faz parte das chamadas ações afirmativas que, para o relator, "são uma forma de compensar essa discriminação culturalmente arraigada, não raro praticada de forma inconsciente, e à sombra de um Estado complacente". O ministro ressaltou, entretanto, que essas medidas afirmativas não devem ter duração indefinida, mas devem ser adotadas durante o tempo necessário para corrigir as disparidades.
O sistema de cotas foi adotado pela primeira vez, em 2004, na Universidade de Brasília. Hoje, 20% das vagas oferecidas pela Universidade são reservadas para as pessoas que se inscrevem no programa de cotas e que preenchem os requisitos. Além de ser negro ou mestiço, o candidato precisa alcançar notas mínimas nas provas de admissão. Depois de aprovado, o aluno "cotista" recebe apoio para evitar a desistência.
Longa discussão
Na Universidade de Brasília (UnB), a medida foi adotado após cinco anos de debates e muitas críticas. O coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UnB, Nelson Inocêncio, acompanhou as discussões desde o início e declarou, em entrevista à DW Brasil, que vários professores, na época, consideravam o problema da raça uma questão menos importante do que a pobreza, por exemplo.
"Ainda tem muito essa coisa no Brasil de achar que o grande problema social é a pobreza. Eu não tenho a menor dúvida de que a pobreza é um problema terrível, mas, lamentavelmente, aliados à pobreza há outros fatores de exclusão. Se você é pobre, você é excluído. Se você é pobre e negro, sofre uma dupla exclusão", analisou.
Para ele, estimular a presença de negros e pardos no ambiente universitário traz vários benefícios. Um deles seria a possibilidade de repensar as estruturas dos cursos e o conteúdo que é passado aos estudantes. Na visão do coordenador, os programas dos cursos são muito eurocêntricos. "Não podemos conhecer o Brasil apenas pelo legado deixado pelos povos europeus. Só podemos conhecer o Brasil aprendendo os legados deixados por todos os povos que construíram essa nação."
Na UnB, além da cota para negros, há também um acordo firmado em 2004 com a Fundação Nacional do Índio (Funai) para o ingresso de dez indígenas por semestre.
Questionamento legal
A questão das cotas para estudantes negros foi discutida no STF porque o DEM alegou que a Universidade de Brasília estava ferindo vários pontos da Constituição com a medida, como o direito universal à educação. Além disso, o partido questionou a possibilidade de se estabelecerem padrões objetivos para identificar quem pertence ao grupo de mestiços, por exemplo.
A advogada do DEM, Roberta Kaufmann, alegou, durante o julgamento, que a adoção de cotas podem trazer mais danos do que benefícios. Segundo ela, "se você não tem um critério preciso para definir, no Brasil, quem é o pardo e quem é o moreno, as consequências da implementação desta medida por meio de lei que vão criar categorias raciais no Brasil podem ser mais desastrosas do que os eventuais bônus que a política pode ocasionar". Segundo ela, há o risco de surgir um sentimento de culturas segregadas, em oposição a um sentimento de cultura nacional.
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